“Marrow” Novo disco dos You Can’t Win, Charlie Brown

You Can't Win, Charlie BrownNas lojas a 7 de Outubro

Na sempre inatacavelmente científica Wikipédia, cuja fiabilidade quase ultrapassa a certeza de que quando Michael Phelps nada é para decorar o pescoço com ouro (inserir ironia a gosto), marrow é um vegetal parente da courgette, cultivado nas ilhas britânicas, na Holanda e na Nova Zelândia. Diz-se ainda que, mantendo as características de cor e forma da courgette, o legume em causa tem um sabor neutro e é insípido quando cozinhado. Até aqui, apetece rir quando pensamos no nome escolhido pelos You Can’t Win, Charlie Brown (YCWCB) para o seu terceiro álbum. Não poderia ser mais despropositada a relação entre esta acepção da palavra e a música da banda lisboeta. Mas basta insistir um pouco na leitura e descobre-se que esse sabor neutro faz com que a sua utilização gastronómica passe sobretudo por servir de invólucro para recheios de todo o género.
E aqui, larga-se o riso e passa-se ao sorriso de reconhecimento. Sim, os YCWCB têm algo disto, de banda cápsula dentro da qual viajam matizes de todo o género, como se no interior de cada canção semeassem e fizessem desabrochar as mais variadas e inesperadas referências. Olhamos para eles e julgamos saber para onde vão, abocanhamos uma canção e julgamos já lhe conhecer o sabor e, afinal, vinga sempre a surpresa, nunca um tema da sua autoria começa como acaba, nunca as certezas vão muito além do primeiro refrão.
É claro que o “Marrow” do título do álbum tanto pode remeter para o dito legume quanto para o nome de solteiro de Ice-T – antes de (Tracy) Marrow se ter casado com o hip hop (mais uma vez, indispensável informação providenciada pela mui solícita Wikipédia). Perguntando aos YCWCB, no entanto, ficamos a saber que “Marrow” vem, enigmaticamente, de medula óssea. E talvez seja com esse enigma que a banda quer jogar. Até porque ao pousarmos o olhar na capa do disco, uma espécie de colorida mancha de Rorschach, aquilo que percebemos é que, aqui, cada um projecta aquilo que quiser e que conseguir. E, de facto, não é pouco aquilo que se consegue projectar na música dos YCWCB.
Recuemos um pouco nessa projecção. Quando, em 2011, a revista francesa “Les Inrockuptibles” salivava sem vergonha diante de “Chromatic”, primeiro álbum do sexteto, atirava ao ar os nomes Fleet Foxes, Bon Iver, Grizzly Bear ou Devendra Banhart para falar da grandiosidade dos arranjos dos rapazes, capazes de montar sobre a simplicidade de uma grande canção folk – resistente ao teste de “se só deixarmos a voz e a guitarra ninguém se vai queixar nem deixar de encontrar aqui fonte suficiente de encantamento” – uma tendência quase barroca de embelezar aquilo que já de si era evidentemente belo.
Essa sempre foi a chave para as canções dos YCWCB: os arranjos não servem para disfarçar lacunas ou para tapar a falta de ideias, mas sim para levar o mais longe possível aquilo que uma simples conjugação de harmonia e melodia promete ser. ”Chromatic” (2011) e “Diffraction/Refraction” (2014) usavam esse dispositivo com uma mestria que sossegava. E sossegava porque se percebia sem esforço a forma como estes seis conseguem olhar para uma melodia e pensá-la quase como um icebergue. Debaixo de cada fio de ideia, descobria-se uma imensidão de outras, harmoniosas, orgânicas, sem ceder ao excesso nem ao medo. Se a música pede cordas, cordas há-de ter; se pede uma segunda parte que em nada se parece com a primeira, pois que assim seja, isso de canções que só se parecem consigo mesmas nem sempre é razão para festejos.
“Marrow” é tudo isto que os YCWCB já antes eram, juntando às ondas de suave melancolia do fim do Verão que sempre percorreram as suas canções uma nova atenção aos sons eléctricos que induzem uns passinhos de dança. As vozes continuam a pairar lá em cima, como que aguentando o céu no sítio de sempre, mas cá em baixo há agora guitarras e teclados com fogo nas ancas, remisturando uma vez mais todas as referências do grupo. Se não desapareceu a tentação de ouvirmos resquícios de melodias chegadas de longe, desde Beatles ou Beach Boys, encontramos desde logo provas no primeiro single, “Above the Wall”, de uma cadência electro-rock que pode ter nos Suuns gente amiga, e evidências em “Linger On” de que os Unknown Mortal Orchestra não se dariam mal como colegas de casa dos Tinariwen (ou, se isso fosse esticar muito a corda, os Vampire Weekend).
“Pro Procastinator”, segundo single de Marrow, lembra a forma como os My Morning Jacket e os Fleet Foxes nos fizeram pensar que a folk pode ser um território agitado, sem leis, fronteiras ou fim à vista. E daí em diante, os YCWCB avançam de surpresa em surpresa, esparsos e atmosféricos em “Mute” ou “In the Light There Is No Sun”, sem deixar de abrigar aqui e ali uma reserva sinfónica; provocadores e dançáveis em “If I Know You, Like You Know I Do”; tão clássicos quanto inquietantes e imprevistos nas canções-mutantes “Joined by the Head” e “Frida (La Blonde)” (a transformação de Frida em Margot, da mulher da Flandres na mulher da Valónia, descrita no “Plat Pays” de Jacques Brel, se sonhada por David Lynch havia de soar mais ou menos a isto). “Bones” fecha a fazer-nos pensar como tudo isto, num dado momento, pode ser tangente ao percurso luminoso de Jeff Buckley.
Gravado no estúdio HAUS por Fábio Jevelim, Makoto Yagyu (ambos dos PAUS) e Miguel Abelaira, com mistura de Luís “Benjamim” Nunes e masterização de Alan Douches, Marrow tem edição a 7 de Outubro e espectáculo de lançamento marcado para a discoteca Lux a 13 de Outubro. Ocasião perfeita para celebrarmos os YCWCB. Sem trair aquilo que há muito neles admiramos, mas como nunca antes os ouvimos.