AMÉLIA MUGE- NA CÓRSEGA COM GIACOMETTI
Amélia Muge esteve na Córsega, onde actuou no Festival Cantares de Mulheres e Instrumentos do Mundo, tendo participado na homenagem a Michel Giacometti, o musicólogo natural daquela ilha sob administração francesa, que juntamente com o maestro Fernando Lopes Graça pesquisou como ninguém as raízes da música tradicional portuguesa. Em entrevista ao «Inside», a original e expressiva intérprete e compositora de «A Monte» falou-nos dessa viagem e dos seus projectos para o futuro, tanto na área da música como nas do teatro e da dança, nas quais também já concretizou algumas experiências interessantes.
INSIDE –Como foi estar na Corsega?
AMÉLIA MUGE – Eu já conhecia a Córsega de outros concertos e também de ter trabalhado num projecto de preparação de formadores, onde conheci amigos para toda a vida. Estive inclusive em concerto, com Lena Ledda (Sardenha) e Lucília Galiazzi na altura em que tínhamos um projecto em conjunto (e com outros músicos franceses, italianos e portugueses) chamado: Terras de Canto. Desta vez, foi, no entanto, muito especial. Mighela Cesari e o marido, Mighele Raffaelli, directores artísticos do Festival, são dois músicos extraordinários e conceberam um festival de homenagem a Michel Giacometti com participações que não foram apenas musicais (eu, os Gaiteiros de Lisboa e a Mafalda Arnauth). Houve também uma exposição fotográfica chamada «O Campo e o Canto» de um fotógrafo muito especial, o António Cunha e a projecção de dois filmes de Pierre-Marie Goulet de homenagem a Giacometti, que são um testemunho impressionante das marcas que este homem fantástico deixou nas pessoas com quem conviveu. Sendo, ao mesmo tempo, um documento único dos encontros entre as gentes e os músicos da Córsega e de Portugal, sobretudo os do Alentejo, cujas cantigas (ou «modas» como é comum dizer-se) Giacometti tinha recolhido, onde se destaca a figura de Virgínia Dias. No segundo filme, há um momento de antologia em que ela canta com Mighela Cesari.
Esteve também no Festival Joaquim Pais de Brito, que proferiu uma conferência sobre todo o contexto sócio-cultural em que decorreram as recolhas de Giacometti.
Como se está a ver, é quase impossível eu falar de tantos eventos e emoções que me reconfortaram a alma, a mim e a todos os que estiveram na Córsega, e nos trouxeram tantas e novas energias.
INSIDE –O que representa o Michel Giacometti para si
na «descoberta» da música tradicional (popular) portuguesa?
AMÁLIA MUGE – Sobre este tema também poderei dizer muita coisa, sobretudo sobre a forma de Giacometti conviver no seio das populações enquanto fazia as suas recolhas e pesquisas (nos filmes exibidos, por exemplo, as pessoas que falam dele começam sempre por referir: ele disse-me isto e aquilo, éramos amigos…). Sente-se que Michel não foi apenas recolher música. Conviveu, de facto, com as pessoas. Deu e recebeu,
Por outro lado, a sua ligação com o maestro Fernando Lopes Graça trouxe uma visão muito importante da riqueza musical do que estava a ser recolhido. Para eles, recolher não era registar tudo, mas apenas aquilo que estava em continuidade com a qualidade artística que existe independentemente de qualquer género musical e dos conhecimentos teóricos que a pessoa possa ter sobre música.
É sobretudo este facto, o rigor das recolhas, que torna este património musical duplamente valioso: o que chegou aos nossos dias são testemunhos exemplares de uma vida musical que de outra forma se teria inevitavelmente perdido, pois não eram coisas que a política vigente estimulasse como exemplos de música tradicional. Não eram, de facto, temas à moda do «Verde Gaio», que, naquela época, servia como bandeira musical do regime.
INSIDE – Que espécie de emoção sentiu quando recebeu o Prémio José Afonso?
AMÉLIA MUGE – Senti-me como uma espécie de «Partido da Oposição» que de repente toma o Poder… Agora a sério: o trabalho do Zeca Afonso não é – de todo – um trabalho de intervenção no sentido estritamente político. É um trabalho sobretudo cultural – no sentido mais lato do termo. Contribuiu, na altura, como um Fausto, um Zé Mário Branco, um Sérgio Godinho, e tantos outros, para dar corpo a uma oposição ao regime, mas as «mais valias» culturais foram em tantos campos, que se tornam incontornáveis como referência. É como um Camões, na Língua Portuguesa.
Nada depois dele foi igual. E quem está na música com o propósito de estudar a sério, não apenas a música no sentido teórico mas que forma e sentido ela tem vindo a ter para a cultura nacional, não pode deixar passar em branco o Zeca.
Ganhar este Prémio foi para mim o acreditar mais um bocadinho que as pessoas entendem de facto qual é o enorme contributo do Zeca. Foi por isso um momento de partilha, onde eu apenas fui um pretexto para dizermos todos (músicos e público) que não podemos parar, enquanto houver força para resistir..
INSIDE – Que projectos para o futuro? E, em sua opinião, o que deverá ser feito, a nível governamental, autárquico e dos órgãos da Comunicação Social para uma maior apoio e divulgação da música portuguesa de qualidade?
AMÉLIA MUGE – O futuro começa sempre ontem, não é? Ora como o meu trabalho musical se divide sobretudo por três áreas de pesquisa-criação (a música tradicional, a canção e a música experimental electrónica, tendo nesta última área o contributo imprescindível, e único, do José Martins, que, é claro, também está presente nas outras áreas) encontro-me a preparar três discos diferentes que me ajudam a separar um pouco as águas – sem com isto querer dizer que me vou fechar dentro de três caixinhas.
Por outro lado, quero continuar também a minha experiência ligada ao Teatro. Esteve em cena o ano passado uma peça da minha autoria «O Dono do Nada» que quero transformar em livro. Gostaria igualmente de continuar as minhas ligações à Dança, com projectos do género da «Cidade Nua», que realizei com o Vo`Arte, tendo como «cúmplices» musicais o José Martins e o José Manuel David. E concertos, claro. De preferência em Portugal, onde, infelizmente, cada vez é mais difícil actuarr. Este ano, por exemplo, já estive na Holanda, em Rennes e na Córsega… e em Portugal, nada. Nem com propostas como aquela que apresentei aos organizadores de Faro – Capital da Cultura, que, passe, a imodéstia, seriam únicas, porque originais, ligando diversos grupos e cantoras portuguesas e estrangeiras,
É, evidente, que tudo isto se prende com a eterna questão de que o dinheiro disponível é pouco. E para a Cultura ainda menos. Então se é realmente pouco não se desbarate.
Não ire, no entanto, entrar em polémicas sobre o que é entretenimento e não é, o que é qualidade ou não é. Mas toda a gente entende, ou deveria entender, que é necessária uma Cultura para o Desenvolvimento e para a Formação e que, nessa Cultura, todas as expressões artísticas estão envolvidas.
Inovação e Choque Tecnológico sem Cultura, não sei o que é. Quando se afirma que noutros países se gasta menos com a Educação e se obtêm melhores resultados do que entre nós, junte-se aos gastos da Educação os da Cultura (para a Educação). Talvez aí tenham uma surpresa. Repare-se, por exemplo, ao nível dos audo-visuais para o pré-escolar, os excelentes programas da BBC para as crianças. Ali, o uso da música em articulação com a língua inglesa é excepcional. As crianças vão para a escola já «com o ouvido feito» para a língua. É que isto não vai só com regras gramaticais.
E tudo poderia ser tão simples: bastava sermos todos honestos, pensarmos no Desenvolvimento de Portugal como um bem maior e quais as formas de Cultura que nos ajudariam melhor a pensar e a alcançar esse desenvolvimento, numa acção conjunta a nível governamental, autárquico e da Comunicação Social.
Autor: Manuel Geraldo