Manuel Fúria & os Náufragos Apresentam vídeo
Apresentam vídeo para “Canção Infinita”
(…) não é uma composição urgente, daquelas que demonstram pressa em cavalgar o instante e procurar um pódio imediato. Não tem medo porque é para sempre.”
Nuno Costa Santos sobre a “Canção Infinita”
Um ano depois do lançamento de “Viva Fúria” e da digressão a que deu mote, tendo passado por alguns dos maiores festivais nacionais como o Super Bock Super Rock, Bons Sons e Festival F, Manuel Fúria & os Náufragos lançam o vídeo para “Canção Infinita”.
Sobre o vídeo, Manuel Fúria refere que a sua forma e conteúdo são uma referência à sua juventude, época em que as suas influências tiveram particular relevância e que foram, como diz a letra da música, “roubadas” e citadas: “Queria sobretudo retirar as impressões que retiraria se tivesse feito esse vídeo para um projecto do liceu, com 16 ou 17 anos, até porque o lugar da canção passa por aí, especialmente na parte falada”.
Leia na íntegra o texto de Nuno Costa Santos sobre a “Canção Infinita”:
Há uma Fogueira que Nunca se Apaga
Sabemos que a “Canção Infinita”, que agora ganha existência em videoclip, tem o mais adequado dos títulos. É uma canção que podia nunca acabar. Manuel Fúria e os Náufragos poderiam tocá-la durante anos, décadas, séculos que nunca iriam cansar os ouvintes, os dançarinos e os burocratas. Aquela bateria, aquela guitarra e aquele baixo poderiam persistir no seu embalo e passar a ser a banda sonora eterna de todas as vidas, nos mais variados templos e nas mais diversas repartições. O próprio Fúria, a dado passo, sublinha esse fôlego: “A música terminou mas a canção não acabou”. Há uma fogueira que nunca se apaga.
Logo que a ouvi, na impessoalidade necessária do Spotify, pensei que merecia ter um vídeo, circular, ser popularizada. Falei do assunto ao Manuel. E ele disse que já tinha matutado na ideia. Mas que a concretização poderia demorar. E de facto demorou. Porque a “Canção Infinita”, sabendo que pode nunca ter um fim, não é uma composição urgente, daquelas que demonstram pressa em cavalgar o instante e procurar um pódio imediato. Não tem medo porque é para sempre.
Caminho longo, este. Faz-se de orgulho e gratidão. De certeza e reverência. Começa com estes versos: “Hei-de ser velho e cantar/Quero ser velho e cantar/’Standing on a Beach’ de frente para o mar”. E assim se inicia a maré de citações, que aparecem integradas nas letras, transformadas noutra coisa, cozinhadas para um outro repasto espiritual. “O mesmo refrão, da mesma canção” é sacado a “Ceremony”, dos Joy Division, apropriado depois pelos New Order e agora também por Manuel Fúria e seus comparsas marítimos. Há famílias aonde novos filhos são sempre bem-vindos.
É a primeira vez que Fúria diz, sem avisar, que é um ladrão. Essa declaração é, antes de mais, corajosa na forma como assume que, ao longo do crescimento, foi fazendo, de forma consciente ou inconsciente, transfusões sanguíneas de certas canções para o seu próprio sangue. “Sou um ladrão” começa a ser dito com a serenidade de quem apresenta um dado. Mas, mais à frente, vem com uma mistura de desespero e culpa, num registo vocal que deve mais a Bernard Sumner do que a Ian Curtis. E a verdade é que estava a faltar culpa à música pop portuguesa. Há bastante arraial, festejo, namorico, desilusão, pedido, mas falta culpa. À séria. Funda. Uma angústia da influência, aqui assumida por Fúria de um modo violento e verdadeiro, num tempo em que já chegámos todos tarde à cerimónia, mas ainda a tempo de a procurar merecer.
O final do tema é uma carta-poema, atravessada por um rio de memórias onde cabem campos lavrados, o primeiro dia da primeira-classe, a morte de uma avó, o Benfica campeão, os primeiros beijos na margem daquele grande rio (mais uma das discretas alusões à poética de Ruy Belo feitas no disco), o nascimento de um primeiro filho. Não sabemos a quem é dirigida a missiva – um amigo, o próprio? Pouco interessa. A biografia só é relevante aqui, como em toda a melhor arte, na medida em que quem a recebe se pode reconhecer nos seus traços – porque à sua maneira os vivenciou. Na partilha de livros, de contos esboçados, de bandas – no caso – como os Red House Painters e os Pavement ou de anjos tímidos como Nick Drake.
á se disse aqui que a “Canção Infinita” é um trilho. E é essa ideia que levamos na bagageira ao seguirmos viagem pelas estradas do clip, agora estreado. A solução escolhida, o uso de filmagens de uma câmara Hi8, transporta-nos para a memória, para as poças que se volta a pisar com umas botas cheias de terra. Manuel Fúria contou os motivos da opção: “Queria sobretudo retirar as impressões que retiraria se tivesse feito esse vídeo para um projecto do liceu, com 16 ou 17 anos, até porque o lugar da canção passa por aí, especialmente na parte falada”. Revela que estas estradas representam percursos da sua infância/adolescência: Estrada Nacional Santo Tirso-Famalicão (da sua casa para a casa dos avós, em Moreira de Cónegos) e Estrada Nacional Santo Tirso-Guimarães (da sua casa para o colégio, nas Caldas da Saúde). E que a cidade que se avista é Santo Tirso.
Não se encontra a performance da banda como nos vídeos de “Aquele Grande Rio” e de “20.000 Naves”. É como se – opção extraordinária – pudéssemos estar a assistir a um vídeo não oficial criado por um fã em romaria. Este é um périplo no qual se espreita o céu e o fio de electricidade que o sublinha e se vêem casas, fábricas, oficinas de escapes, carros, quintas, um homem de boné, uma mulher de sacos de plástico na mão, um pai e um filho a jogar à bola, uma igreja, um cemitério, uma parede na qual alguém consagrou o seu amor juvenil pelos Doors e pelos U2.
A deambulação tem um duplo efeito contemplativo: o de fazer olhar a irregularidade da paisagem e o de ajudar a ouvir com atenção a letra. É como se a canção estivesse a ser passada no rádio do automóvel. Vamos vendo o que o operador de câmera filma e privilegia mas também cantarolamos a música, seguindo, uma a uma, as suas pistas. E tentamos, em cada audição e em cada visionamento, desvendar o grandioso mistério do seu significado.
Nuno Costa Santos