A ironia de Rui Zink: “Não há futebol em Portugal!”

A ironia de Rui ZinkTalento da escrita, nota-se-lhe também mestria na irreverência, na pimenta que lhe tempera o discurso – ele sempre foi assim: rebelde com ironia na ponta da língua…

Rui Zink. Homem de opiniões fortes, não disse que não ao desafio – e atirou o seu olhar para o desporto. Corrosivo. Como sempre. “Quando era mais novo pratiquei bastantes desportos. O meu avô tinha uma técnica que consistia em: se tiveres uma perna partida o melhor é parti-la toda!”, começa por contar, demonstrando desde logo ao que vem. “Aos 2 anos ia morrendo de asma, aos 3 ele pôs-me na ginástica! Fiz ginástica até aos 10, depois fiz remo, fiz corta-mato, fiz natação – ainda participei em algumas provas pelo Benfica. Eu era bom a nadar bruços. Tinha umas grandes patas! A partir dos 13 anos comecei a praticar Karaté, que é de facto a minha paixão e aquilo que pratico há quase 30 anos. Se se perdeu algum talento em alguma modalidade? Sim, a jogar à carica! Eu era muito bom a jogar à carica em miúdo! Fazíamos a Volta a Portugal em carica nas bordas dos passeios do bairro. O país não investiu em mim nessa altura. Penso que a pátria ficou a perder. Hoje podíamos ter um pavilhão da carica Rui Zink! É claro que hoje esse desporto já não pode existir em Portugal: qualquer miúdo que vá jogar à carica para a borda de um passeio não durará mais de 20 segundos!”, explica, passando depois para o outro lado, o do observador. Com sarcasmo – a sua imagem de marca. “Gosto de ver futebol. Para mim, o futebol tem 3 aspectos que são muito interessantes: pode-se beber cerveja com os amigos; sabe-se que, quando aqueles jogadores ricos e elegantes se retirarem do futebol, lá para os 30 anos, vão ficar ainda mais gordos que nós; e permite essa coisa espantosa que é chamar velhos a homens bastante mais novos que nós! Ainda no outro dia o meu pai, que tem 81 anos, virou-se para mim e disse-me, com um sorriso matreiro: o Figo está velho! Isso é muito interessante… Se isso me consola? Sim, é o princípio da igualdade: se não podemos chegar ao pé dos outros, que sejam os outros a descer até nós! Aliás, essa é uma acusação que geralmente se faz à Esquerda!” Como adepto, recusa liminarmente a hipótese de ser adepto do Sporting. “Não sou adepto do Sporting! Sou adepto do Varzim! Nunca fui do Sporting! Lagarto, lagarto, lagarto! Quem disse isso fez uma difamação e eu ponho-o em tribunal! É claro que se me apontarem uma pistola à cabeça ou se me atiçarem uma manada de adeptos da Juve Leo no Lux à noite e eles me tentarem agredir oferecendo cervejas ou charros, é evidente que eu aí até era capaz de reconsiderar e assumir-me como sportinguista! Mas sou adepto do Varzim desde os 5 anos de idade! Foi uma coisa que me deu: antes mesmo de saber que a Póvoa de Varzim era a terra de Eça de Queiroz eu achava muita piada ao facto de aquilo ser o clube dos lobos-do-mar. Achava bonito. E depois naquela altura só havia 2 clubes interessantes para mim: o Varzim e o Benfica. Porquê? Qualquer técnico de Marketing sabe que num colectivo, numa competição, apenas duas equipas são visíveis: a dos primeiros e a dos últimos! E o Varzim era um desses clubes interessantes, juntamente com o Benfica, que nessa altura ganhava tudo. O meu pai ainda se lembra de um jogo em que o árbitro deu 15 minutos de desconto até que o Benfica marcasse e não perdesse! Era um escândalo naquela altura o Benfica perder! Aliás para mim essa equipa capitaneada pelo grande Coluna é a melhor equipa portuguesa de sempre. Também gostei muito da equipa do Madjer que conquistou a Taça dos Campeões mas aquela equipa do Benfica é a melhor! Dos 3 grandes posso dizer que o Benfica é a equipa pela qual nutro mais simpatia. Por razões históricas: o meu pai era do Benfica. Que comentário faço ao estado actual do futebol em Portugal? Não há futebol em Portugal, que eu saiba! Há estádios, muitos estádios novos, e há uma equipa de futebol, que é o Porto! Mais nenhuma, o que torna os jogos muito aborrecidos, porque um jogo só tem piada se houver pelo menos duas equipas decentes!
Das equipas para quem as treina. Para a dança constante dos homens do leme. “O que se passa com os dirigentes que despedem os treinadores é um pouco como acontece em todas as áreas, isto é, está na moda o renovar e o inovar, e então o truque dos chefes é renovarem e inovarem os capatazes! O sonho de qualquer presidente de clube é durar o mais tempo possível no poder e por isso de vez em quando vai renovando e inovando. Quer os treinadores quer os jogadores são mercadoria! É tudo vendável! O mais escandaloso para mim é que o Benfica agora até já equipa de cor-de-laranja! Começou pelos fatos-treino laranja, depois teve aquele apoio vergonhoso da direcção do clube ao PSD nas eleições…Eles tinham um clube, que era dos encarnados, e de repente passou a ser um clube Maria vai-com-as-outras? E se o próximo governo for do PS, será que o Benfica vai passar a ter equipamento cor-de-rosa?”, questiona-se, a pimenta sempre salpicando o que diz, passando depois para o nóvel técnico do Chelsea. “José Mourinho? Os actos, felizmente no caso dele, valem muito mais que as palavras e os tiques faciais! O maior adversário do José Mourinho é ele próprio!”
A força de uma expressão. “Os despedimentos dos treinadores a meio da época, a chamada chicotada psicológica é uma expressão tão feia, horrível! A única que eu conheço que pode ser tão feia é bomba inteligente. É uma expressão tão estúpida! Dar uma chicotada é o contrário da Psicologia! Qualquer pessoa sabe que se queremos que as pessoas trabalhem bem não é com o chicote que vamos lá. O chicote não se usa nem para o burro nem para o escravo!”
A crise instalou-se no país. O futebol não foge à regra. Haverá irrealismo na forma como os clubes estão a ser geridos? A resposta surge rápida. Demolidora. “Não há irrealismo dos dirigentes porque só haveria se os dirigentes fossem penalizados pelas asneiras que fazem. Como em Portugal, em qualquer área da sociedade, quem é penalizado é sempre o mexilhão, os dirigentes não são irrealistas. É como um gestor que gere mal a sua empresa: abre falência, os trabalhadores vão para a rua e ele continua a passear o seu carro, a ser protegido e se calhar até abre outra empresa ao abrigo de concursos europeus! Os dirigentes não são penalizados pelas asneiras que fazem, portanto até acho que são bastante realistas! As massas que dirigem o futebol mais cedo ou mais tarde vão acabar! O grande problema dos clubes é um problema de democracia formal, isto é, os dirigentes são eleitos pela massa associativa, que geralmente é a mais fanática e a menos bem informada! O clube representa depois muitos simpatizantes, que, como não são sócios com quota em dia, não têm direito a voto. Os mais sensatos não votam e os menos sensatos elegem uns indivíduos que geralmente são muito sensatos em proveito próprio mas pouco sensatos em proveito do clube! Isso acontece sobretudo a nível dos grandes! Essencialmente, o grande problema são as massas: os salários pagos aos jogadores são excessivos, as massas que vêem sentadas no sofá são em maior quantidade e rendem mais massas ao clube que as que estão sentadas no estádio, e quando há um jogador bom ele é vendido – depois espantam-se que já não haja amor à camisola! Um jogador sabe que tem um tempo de vida futebolística curto, durante o qual ele tentará amealhar o mais possível, o empresário do jogador ganha com a mobilidade do jogador, logo tentará promover a mudança, e depois há ainda a direcção do clube, que ou está em vias de cair ou está em vias de fazer uma engenharia financeira que transcende o jogador…Quando um jogador entra em campo não sabemos com que problemas na cabeça ele o faz, ou em função do que negociatas internas. O treinador tem uma posição muito fraca hoje em dia no futebol. O enfraquecimento do treinador é o enfraquecimento da verdade desportiva! Se acho que há ainda há verdade desportiva no futebol? Eu até posso tentar achar mas é como tentar encontrar uma agulha num palheiro! É claro que há lobbies, espantoso seria se não houvesse! Eu sou a favor dos lobbies! Um lobbie é uma representação de um interesse. O que eu acho engraçado é que se podia fazer um livro só com as frases misteriosas, conspirativas, dos dirigentes nos últimos 5 anos! Se formos a acreditar no que se diz sobre o futebol isto é pior que a máfia siciliana, mas com uma diferença: na máfia siciliana só dizem mal os que não são da máfia, enquanto que no futebol português são os próprios dirigentes que o fazem! O futebol não precisa de inimigos porque os que deviam ser amigos são os seus maiores inimigos…”
A poucos dias do Europeu, urgia ouvir a opinião de Zink sobre a polémica dos milhões gastos na construção dos estádios. Desperdício? “Não compreendo como é que em Lisboa estão a ser construídos 2 estádios separados entre si por, salvo erro, por 1673 metros! Acho isso ridículo e patético! A ideia da construção de um estádio municipal era de facto a mais acertada! Mas é irónico ver como a gente da banca e a gente da construção civil tem os pés bem enterrados no cimento do relvado futebolístico há mais de 30 anos! Mas que mais posso eu fazer além de comer e calar? Já há muito tempo aprendi que só vale a pena protestar contra algo que eu poderei mudar! Corremos o risco de estar a construir edifícios que não passarão de castelos mal assombrados…”, ironiza, saltando para dentro do relvado, para a competição propriamente dita. “Acho que não temos hipóteses de ser campeões europeus! Tivemos hipóteses há 4 anos, quando tínhamos uma selecção maravilha, que tinha conquistado a simpatia da Europa quer com as suas qualidades humanas quer com as capacidades futebolísticas, mas chegou aquele jogo com a França, em que tivemos azar, onde apareceu o português feio, o javali dentro de nós veio ao de cima e caiu por terra, com aquela violência, com aquele verdadeiro motim felgueirense, tudo o que havíamos construído até então…Para o ano os jogadores estão mais velhos. É evidente que há jogadores novos mas há acima de tudo um grande salto geracional, isto é, os jogadores ou são muito novos e prometedores ou são velhos e vão chegar cansados ao Europeu. No último Mundial só o Paulo Bento e o Pauleta é que se portaram decentemente! Aliás tenho uma admiração enorme pelo Paulo Bento, ele é o português no seu melhor, em termos de carácter, de fibra, da forma como o jogo deve ser encarado. É um indivíduo de antes quebrar que torcer mas que sabe temperar a teimosia com a sensatez. Os outros…Deixo aqui uma questão: como é que um jogador como o Figo, que vai estar no anúncio da Coca-Cola no Euro 2004, pode não ir jogar mesmo que esteja magoado nas duas pernas? Ele é prisioneiro dos contratos publicitários! Mesmo que ele quisesse dizer ao treinador que não podia jogar, não podia fazê-lo! Tem muitos compromissos! Por isso não acredito muito nesta selecção. Esta equipa tem uma geração de ouro que já foi, e uma geração que ainda não construiu o seu espaço porque os outros não deixam! Para além disso, temos um admirador de Pinochet no comando técnico! Custa-me a engolir que o seleccionador do nosso país se assuma como um admirador de Pinochet. Não discuto o seu valor como treinador, mas lembro-me que aqui ao lado um juiz com tomates mandou prender o Pinochet! A naturalização do Deco? Acho que ele é o melhor jogador português. Não vejo por que havia de estar contra ele jogar na selecção portuguesa! O patriotismo, ou melhor, o patrioteirismo, é uma doença infantil. Eu sou adulto…É irónico que nós, que fomos um dos países que inventou o cosmopolitismo, sejamos tão fechados e provincianos nestas coisas! Temos muito aquela ideia que só aqueles com 3 litros de sangue de 300 gerações é que são portugueses. Só os que são da família do Pacheco Pereira é que são portugueses? Eu sou português e não tenho nome português! Será que devo ser expulso da selecção? Se há coisa que eu admiro nos Estados Unidos da América é saber que se eu tiver de fugir eles me aceitam lá como cidadão!”
Sobre a relva, o pedestal está colocado. Para Zidane. “Ele ainda é o melhor do mundo. Aliás, acho que ele é, como jogador, o mais parecido comigo. Porquê? É careca como eu, é bonito como eu, respeita os valores cristão e da família como eu, e tem uma elegância de passe e uma relação de amor com a bola como eu tenho com a caneta e com o papel… Mas o Maradona será sempre o maior do mundo! Quando o proibiram de jogar no Mundial dos Estados Unidos estiveram a atentar contra a verdade desportiva. A verdade desportiva para mim é ver um génio a jogar! Óscar Wilde tinha práticas sexuais pouco conformes à lei, Camilo Pessanha metia-se no ópio e foi um dos maiores poetas portugueses de sempre, Camões nunca casou, Fernando Pessoa era alcoólico, muitos dos grandes escritores tinham vícios perigosos, o que conta é o resultado! Prefiro mil vezes ver o Maradona gordo e cheio de comprimidos em cima do que ver todas as selecções europeias de hoje em dia. O Maradona mesmo a andar ao pé-coxinho enchia o campo – um génio da desmarcação, um génio da colocação em campo, um génio da compostura, do olhar em frente…O golo que ele ofereceu ao Caniggia no jogo contra o Brasil é de antologia! Devia ser estudado nas faculdades, nas aulas de poesia! Só não é porque ele é um drogado. Mas o que é que isso interessa? É arte! Sócrates era pedófilo e isso não invalida que nós não possamos aprender com o pensamento dele! O extermínio da carreira do Maradona foi o maior crime contra a verdade desportiva nos últimos anos!”

Frases soltas de um homem de pensamentos livres:

“O futebol não é o ópio do povo, é a heroína marada! É droga de má qualidade vendida a preços excessivos!”

“O prazer de chegar a um estádio e começar a discutir o jogo com o estranho que está ao nosso lado é algo que as mulheres não conseguem entender!”

“O futebol é a última orgia que nos é permitida!”

“ O futebol é o jogo em que o rapazinho enfezado, alimentado a batatas e a restos de comida pode ganhar ao rapaz alimentado a Corn Flakes e cheio de força. Em que outro desporto um indivíduo com o corpo do Maradona podia ser o melhor do mundo?”

“O meu modelo para aguentar a pressão aquando da escrita d “Os surfistas” foi o Carlos Lopes…”

“O desporto deu-me disciplina interior, capacidade de enfrentar as dificuldades e bonomia perante a derrota. Se consigo algumas vitórias é porque já fui derrotado muitas vezes…”

“Futebol? Desporto com pés e cabeça que hoje, infelizmente, é somente tratado com os pés…”

“Glória? Gosto mais da Cinha Jardim!”

“O Octávio Machado é um homem de ideias feitas, que não aprende com os seus erros. Não me parece uma pessoa disponível para aprender…”

Autor: Pedro Chagas Freitas