ADOLFO LUXÚRIA CANIBAL EM MEGA ENTREVISTA

Adolfo Luxúria Canibal

Homem forte e voz dos Mão Morta, ele é um anti-sistema por vocação. Abdicando de anestesia, coloca o dedo nas feridas que mais fazem sangrar o mundo. Sem receios. Ele sempre foi assim – rebelde com ousadia na ponta da língua…

Foi em Paris que o “Inside” foi encontrar Adolfo Luxúria Canibal – ou simplesmente O Canibal para os milhares de fans que o grupo granjeou ao longo dos tempos. Com um sorriso nos lábios começou por explicar as razões que o fazem fazer vida na cidade-luz. Opção? Obrigação? “Para todos os efeitos é uma opção, mas no fundo foram contingências familiares a trazerem-me para aqui.

A minha mulher é francesa e como não conseguia arranjar trabalho em Portugal teve de regressar ao seu país. Eu tive de optar entre ficar em Portugal ou vir com ela e com o nosso filho e acabei por decidir vir… O que é que ela faz? É cineasta, faz documentários e o único que conseguiu fazer foi o ‘Esta estação é sua’, sobre a SIC, que deu azo a uma imensa polémica. A partir daí, nunca mais conseguiu fazer nada!”, exclama, ironia a saltar-lhe para as palavras, em conclusão ao seu jeito, “Portugal é um país que não está habituado aos escândalos!”.

Paris é cidade grande, sonho de muitos. E uma das preferidas de Adolfo. “Sempre me atraiu muito esta cidade! Nesse sentido, a minha vinda para aqui até foi muito agradável. Se me desperta alguma nostalgia? Não, nunca tinha vivido em Paris antes, como poderia sentir alguma nostalgia?”, questiona, enumerando depois o que o faz gostar da cidade, “esta cidade cria desafios. Tem sempre muitas coisas a acontecer e mesmo que faça uma vida mais recatada, de bairro, tenho sempre à mão de semear os desafios que a grande cidade provoca. E isso dá-me muito gozo, de tal forma que ao fim de três anos e meio aqui a morar sinto-me tão virgem como se tivesse acabado de chegar!” Homem das letras, recusa contudo que a inspiração seja resultado da cidade onde vive. “A minha inspiração é sobretudo literária, apesar de ter muito de vivencial, mas Paris não me inspira mais do que Lisboa, Braga ou qualquer outra cidade onde eu viva! Que diferenças encontro entre Paris entre Braga? Não há comparação possível!”, clama, colorindo as palavras com um sorriso maroto, “Braga é uma pequena cidade, para todos os efeitos de província, com todos os defeitos que têm as pequenas cidades de província, das quase-aldeias. Tem as vantagens, poucas, que têm as aldeias, e sem as vantagens, muitas, que têm as grandes cidades. Está naquela fase intermédia em que no fundo só tem desvantagens! Não tem actividade cultural, não tem diversidade, não tem cosmopolitismo, não tem descanso, tem excesso de tráfego, não tem possibilidades de uma pessoa desvanecer caminhando a pé ou deslocando-se calmamente, não tem jardins nem espaços verdes, está naquela fase intermédia de tamanho que francamente provoca mais tédio do que prazer!”, acusa, dando razão àqueles que dizem que ele, sendo português de Braga, está a virar as costas à sua terra. A esses, prefere nem responder. “São opiniões como outras! De pessoas que não me conhecem! Não tenho nada a dizer sobre isso!”.

A música portuguesa está numa fase de transição, naquilo que podíamos designar de segunda revolução do quadro criativo.

Era altura de alargar horizontes, de passar do âmbito das cidades para o dos países. Dos povos. Das gentes. Aí, Adolfo sente-se como peixe na água. “Em termos de simpatia social, os franceses são mais simpáticos! No dias a dia, no comércio, nos cafés… Mas em termos de relacionamento profundo com as pessoas, os portugueses são muito mais dados, depois de se entrar na alma de um português ficamos lá dentro, enquanto que depois de entrarmos na alma de um francês não ficamos, podemos tornar a sair – o lugar não fica cativo. Por outro lado os franceses têm muito mais planificação. Os portugueses são muito mais preguiçosos, são muito mais na onda do desenrasca. Mas no fundo a grande diferença entre os dois, a grande vantagem dos franceses, é o facto de os franceses serem muito mais frontais – sabem dizer não, saber bater o punho, sabem reinvindicar, sabem fazer valer os seus direitos, têm muito mais facilidade em reunir-se, de criarem associações, de forma a terem uma visão social colectiva. Os portugueses são muito mais individualistas, muito mais submissos, preferem rodear os problemas em vez de os enfrentar…Nesse aspecto gosto mais dos franceses, que sabem dizer frontalmente não e mandar vir, do que dos portugueses, que encaixam, metem o rabo entre as pernas e depois fazem pela sucapa!” Apesar de português, não parece embarcar na palavra sem tradução – saudade. “Não tenho muitas saudades de Portugal! Sou português mas para mim a saudade é um sentimento que me é um bocado estranho. Às vezes vou duas ou três vezes por mês a Portugal mas há alturas em que passo três ou quatro meses sem lá pôr os pés. Acho que o meu recorde é de meio ano sem ir lá…”
Contrariamente ao que seria de esperar, Adolfo leva vida…caseira! “Fico quase sempre no meu bairro! Trabalho em casa, em frente ao computador.” Formado em Direito, não exerce a profissão de advogado. “ Neste momento já deixei de exercer. Mas faço outras coisas. Nos últimos tempos tenho trabalhado sempre dez horas por dia sem parar. Quase sem respirar! Estou a fazer as letras para o novo disco de originais dos Mão Morta, estive a tratar do processo de criação da editora dos Mão Morta, A Cobra, estive a fazer letras para os “Clã”, estive a organizar um livro meu que vai ser editado pela Quazi, que vai ter o título de “Estilhaços” agora tenho de fazer um argumento de Banda Desenhada…Há sempre coisas para fazer e isso obriga-me a ter uma vida quase de escritório!”

Distante geograficamente, não esconde algum distanciamento das questões que mais tem invadido as manchetes em Portugal. Ainda assim, não se inibe de opinar. “Sei de alguns escândalos absurdos. Absurdos na forma como são tratados pelos órgãos de informação. A informação em Portugal está muito ligada ao fait-divers, ao pormenor, nunca há uma análise profunda, nunca se tenta debruçar ao que está subjacente à superfície do iceberg. Não tenho grande pachorra para isso! Mesmo na questão da pedofilia, a imprensa em vez de discutir o fundo do problema, ou seja, a pedofilia em si mesma, prefere discutir sobre se os acusados têm ou não têm perfil de pedófilo, se são ou não são boas pessoas, isso é absurdo, isso não é uma discussão! Mas não há nada a fazer, as coisas funcionam assim mesmo! A discussão dos portugueses era se a figura pública pode ou não pode ser aquilo que o acusam de ser! Escândalos de pedofilia já os houve na Bélgica, há em França, há em Inglaterra e discute-se sempre a pedofilia, se um pedófilo é um doente ou é um criminoso, mas em Portugal não! Em Portugal discute-se se a figura que foi presa é ou não é pedófilo! Isso compete aos tribunais dizer!”, brada, virando agulhas para a questão da guerra, onde o cenário parece ser muito parecido, “em Portugal em vez de se discutir a questão de fundo, que é a agressão americana, discute-se a posição da França! Desviam-se os assuntos, ludibria-se a opinião pública em Portugal, através desse actos de prestidigitação e de confusão que se confundem com democracia e com liberdade de opinião! O importante é dizer que não há direito nenhum de invadir o Iraque, até porque o Iraque é um país paupérrimo, com um exército perfeitamente desfeito depois de duas guerras seguidas e de dez anos de embargo, é um país sem recursos, tirando o petróleo, que até está fechado. E mais, é um país que por causa do embargo sofreu mais mortes do que meia dúzia de ataques às Twin Towers! Não tem ligação nenhuma com o terrorismo, até porque é de outra formação religiosa – é um estado laico, como o francês, e contrariamente ao americano, que é Baptista e onde faz tudo em nome de Deus, até a moeda: In God we trust!. Não há qualquer motivo ou legitimidade em termos de direito internacional, eles não fizeram nenhuma agressão, não fizeram rigorosamente nada, mesmo que tivessem armas nucleares – o que eu não acredito. Se tivessem já estavam descobertas – têm tanto direito a tê-las como os Estados Unidos ou como a França ou como o Paquistão ou como a Índia ou como a China… Porque é que eles não hão-de ter se os outros têm? O facto de o Saddam ser um ditador… O mundo está cheio deles! E muitos deles postos lá ou alimentados pelos Estados Unidos, como no Paquistão ou no Panamá. Qual é a lógica de mandar abaixo o Saddam? Por ser um ditador? Isso é um problema interno do Iraque, não é um problema dos Estados Unidos! Nós também tivemos um ditador, o Salazar, e ainda bem que os Estados Unidos não bombardearam Portugal por nós termos um ditador! Eles até fizeram bons negócios com ele!

O que é importante, para mim, é que a música portuguesa passe na rádio! Porque é o único terreiro de experimentação que a música portuguesa tem para ver se funciona ou se não funciona, a música portuguesa não vai encontrar público no estrangeiro, tem de encontrar no próprio país, e se a rádio é o único ponto de ligação entre os criadores e o público, a música portuguesa tem de passar na rádio.

O George Bush? É um fanático alienado pela religião Baptista!”, exclama, a frontalidade estendida sobre o discurso, “e é um bocado desconcertantemente ignorante! Não percebe nada dos equilíbrios mundiais – é um gajo que nunca saiu do Texas! -, não conhece a vida, não conhece o mundo. O gajo percebe de petróleo, não percebe de mais nada! E de petróleo, penso eu que ele percebe…”, afirma, sarcasmo em forma de palavras. De Bush a Durão Barroso, um salto de muitos quilómetros. Mas sempre a corrosão da sinceridade à flor da pele. “O Durão é um estalinista reconvertido. É um tipo que enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros foi terrível – a quase entrega oficial de Timor à Indonésia foi pela mão dele. Felizmente vieram os socialistas que, mesmo com os seus muitos defeitos, conseguiram a esse nível, o dos Negócios Estrangeiros, conseguiram dar a volta à questão timorense. Neste momento, com a sua decisão de apoiar os Estados Unidos, nas circunstâncias em que foi, é um tipo que se vê que não tem qualquer estratégia para Portugal! Porquê? Por uma razão muito simples: a afirmação de Portugal face ao vizinho espanhol é de demarcação de águas ou de terras. Portugal em termos estratégicos, mesmo integrado na União Europeia, só tem a ganhar tendo oposição construtiva face à Espanha e não integrando-se nos grandes desígnios espanhóis!”, explica, atirando mais uma acha para a fogueira do raciocínio, “O Aznar não tem nada a perder, não pretende voltar a ser Primeiro-Ministro, e está-se a marimbar para a sua popularidade em termos internos mas pretende que a Espanha ocupe um espaço internacional, que ele acha que é o espaço espanhol, portanto este protagonismo da Espanha é uma opção estratégica de autonomia e de protagonismo da Espanha na cena internacional. Portugal, ao seguir o mesmo caminho, está a anular-se enquanto país, está a anular-se em protagonismo internacional, está a dar um tiro no pé em termos de sobrevivência enquanto país. Face a esta posição dos espanhóis, Portugal só ganharia autonomia, só ganharia protagonismo, furando essa hegemonia ibérica e criando uma diferenciação… O Durão Barroso não tem qualquer estratégia estadista de Portugal no mundo, para a sua sobrevivência enquanto nação! Ele está a anular Portugal e a sua história!”

Não se ficam por aqui as críticas ao Primeiro-Ministro e ao seu governo. “Há um desnorte completo! Não sabem o que querem e o que não querem! Primeiro querem acabar com a RTP2 e depois fazer um estudo do que é o serviço público, agora já não querem acabar com o canal mas querem acabar com programas como o Acontece – paradigmas daquilo que deve ser o serviço público – por critérios privados, perfeitamente economicistas. Até parece que o Canal 1 não custa dinheiro! Querem tomar as decisões sem saber para que é que tomam as decisões.”, exulta, atirando a sua revolta para mais um assunto delicado. Que pisa e invade sem olhar para trás. “A maneira como acabaram com as chefias na Polícia Judiciária no momento em que se estava a investigar as relações do Paulo Portas com a Moderna também foi muito esquisita…Toda a investigação que estava a ser feita acaba por ir por água abaixo a partir do momento em que eles arrumam com a hierarquia da justiça! O Paulo Portas é um mestre do directo, é um prestidigitador! Mas há muitas contradições. Dá a ideia de que é um governo à deriva…”

Recusando liminarmente a hipótese de se tornar militante de um partido, assume-se como defensor de ideais que se posicionam no limiar da anarquia. Sem ser um anarca. “Numa sociedade organizada à volta da propriedade privada, seja dos meios de produção seja dos meios financeiros, é evidente que se criam situações de competição e de inveja e de vontade de se apropriar da propriedade do outro, o que implica a existência de forças da ordem. Mas numa sociedade em que a sua organização não esteja à volta deste egoísmo, mas sim na partilha, a mentalidade das pessoas, que é uma imanação directa das condições em que vivem, e dessa forma já não seria necessária a existência de forças da ordem, já que seriam as próprias pessoas a gerirem-se a si próprias…Ideologicamente não sigo nenhuma doutrina anarquista, obedeço somente ao meu próprio pensamento! mas muito do que eu penso encontra eco em muitos pontos das ideologias libertárias…”

A música corre-lhe no sangue. Atirando a reflexão para o momento do mercado em Portugal, traça o seu cenário. “A música portuguesa está numa fase de transição, naquilo que podíamos designar de segunda revolução do quadro criativo. Há muita gente a fazer música, com muitos projectos a aparecer, com características genéricas comuns, nomeadamente a utilização da língua inglesa ou até a cópia descarada de modelos anglo-saxónicos, mas também com ultrapassagem de estádios anteriores, isto é, começa a assistir-se a um real aparecimento, com alguma estruturação, de coisas alternativas, de editoras independentes, de estruturas de produção de concertos independentes, de circuitos alternativos que começam a dar os primeiros passos. Em termos de tudo que rodeia a música portuguesa, essa transição também existe, temos assistido ao fim da hegemonia das multinacionais em Portugal, do seu desinvestimento na música local, aquilo que era um desenvolvimento industrial da música começa a cair, ou seja, mais uma vez Portugal não tem indústria, nem sequer cultural, o que é consequência da falta de fair play radiofónico da música portuguesa, da não criação de um corpo sólido de relação entre a música gravada e a música ao vivo, da decadência dos moldes da indústria da música ao vivo. Estamos numa fase de charneira para ver se a música portuguesa passa para uma segunda fase, em que cria alternativas para o seu desenvolvimento, crescimento e sobretudo para a sua criatividade, ou se, pelo contrário, a música acompanha a decadência do meio onde habita… O que é importante, para mim, é que a música portuguesa passe na rádio! Porque é o único terreiro de experimentação que a música portuguesa tem para ver se funciona ou se não funciona, a música portuguesa não vai encontrar público no estrangeiro, tem de encontrar no próprio país, e se a rádio é o único ponto de ligação entre os criadores e o público, a música portuguesa tem de passar na rádio. E só atingindo o público, só crescendo, só vendo se o público pega ou não pega – independentemente da qualidade, que é uma questão completamente à parte – é que a música pode crescer, pode ter embalagem, pode ter suporte para dar o salto e para crescer de outras formas. Se a má música crescer, for hegemónica e tiver público, a música alternativa pode funcionar e crescer como alternativa!. O sistema Play List em si não é um sistema mau! É claro que eu gostava muito mais dos programas de autor do que agora com este sistema, em que a música é sempre a mesma! Seja qual for a rádio parece tudo igual! Se é verdade que o sistema acaba com o fascínio e com a surpresa dos programas de autor, também é verdade que dá uma harmonia que não poderia existir de outra forma. se for bem programada, isso pode acontecer, o que não acontece em Portugal, em que as rádios são todas iguais!”

Habitando num recanto do mercado, os Mão Morta não podem dar-se ao luxo de viver somente da música que fazem. “Os Mão Morta poderiam, talvez, neste momento, viver da música que produzem”, afirma, corrigindo logo de seguida, “ou melhor, poderíamos sobreviver, viver em estados de semi-pobreza! Há grupos em Portugal que vivem da música, mas esse raciocínio está falsificado à partida. Não nos interessa de maneira nenhuma viver à custa da música que produzimos! O que nos dá gozo é fazer a música independentemente dos seus resultados comerciais, queremos ter o luxo de fazer flops comerciais sem que isso nos cause problemas. Não prescindimos desse luxo! Há uma enorme luta pelo controle de mercados musicais em Portugal! Por causa disso é que a indústria fonográfica não se une para resolver o problema da rádio. Não se entendem porque têm todos medo que o outro fure um acordo que se pudesse firmar. Têm todos interesses diferentes. Se os Mão Morta poderiam atingir mais público se assumissem uma postura mais politicamente correcta? É evidente que se tocássemos uma música mais mainstream atingiríamos um público mais mainstream, dado que o público mainstream é maior, por definição, que o público alternativo! Mas nós fazemos a música assumidamente para o nosso umbigo, para nosso gozo pessoal. Só depois é que o nosso trabalho é levado a terceiros. Se há terceiros que se revêm e que partilham connosco o nosso questionamento musical e social, tanto melhor! Se são muitos ou se são poucos é indeferente! Mas nunca vamos fazer música prostituída, a pensar que temos de atingir um patamar de público ou que nos permita viver dos rendimentos musicais, ou até por questões de celebridade, isso está fora de questão para nós! Se quiséssemos isso teríamos de mudar o que somos! A nossa postura não é essa! A música para nós é algo de extraordinariamente pessoal, é uma relação de amor, uma necessidade mesmo de raciocinar, de pensar, de confraternizar, de através de uma reflexão colectiva atingir conclusões a que nunca chegaríamos sozinhos. O trabalho de grupo faz-nos ultrapassar a nós próprios e é isso que nos interessa na música. Não queremos fazer da música o nosso ganha-pão! Para isso temos as nossas profissões…”

No horizonte, aparece o futuro, onde Adolfo se sente mais português que nunca. “Não temos grandes projectos! Nisso sou extraordinariamente português! Não traço objectivos a longo prazo, gosto mais de fazer as opções em cima do acontecimento e em cima do instinto. É o instinto que me dita as opções e é o instinto que arca com as responsabilidades depois de as coisas estarem feitas!”
Adolfo é um pensador. Na sua mente não casa pensamento com religião. “Não simpatizo com nenhuma religião! Nem na teoria nem na prática! Eu tive uma educação católica, fiz a primeira comunhão, a comunhão solene, essas coisas todas… Nas estatísticas da Igreja Católica deve ser um dos cristãos portugueses mas nas minhas estatísticas pessoais reneguei a religião desde os catorze anos, desde que tive autonomia para pensar. Se algum dia vou regressar ás origens e acreditar na existência de um Deus? Não!”, responde. Taxativo.

Há alguns anos abriu polémica dizendo ter horror a junkies. Anos volvidos defende a liberalização e legalização da droga. Para bem de todos. “Seria uma medida de salutar política de saúde pública, de política criminal. O controle da venda através de organismos estatais, de farmácias, era essencial! Isso iria acabar com o tráfego, é a única medida que põe fim ao tráfego. Não é com medidas repressivas que se vai lá! Há sempre outro a ocupar o lugar do que foi preso! Dá demasiados lucros para acabar! Por outro lado iria provocar um abaixamento de preços, ia acabar com a pequena criminalidade associada ao consumo, e também iria acabar, a longo prazo, iria acabar com as novas entradas massivas que são provocadas pelo facto de ser uma coisa clandestina, ia acabar com a adulteração dos produtos, com os envenenamentos e as overdoses, ia estabilizar os consumidores numa dose fixa, ao contrário do que acontece hoje, em que se consome tudo de uma vez um dia e no outro, como não há dinheiro, se entra em ressaca, e essa estabilização iria propiciar aos Junkies, aos viciados, uma integração mais efectiva na vida social, uma vez que não teriam de ocupar o seu tempo a pensar onde iriam arranjar o dinheiro para a próxima dose. Há toda uma série de vantagens… É claro que uma politica de legalização teria de ser acompanhada por uma grande dose de politica informativa, não da forma paternalista como tem sido feita, mas em termos reais – o Junkie é uma pessoa que gosta muito de saber aquilo que lhe diz respeito, nomeadamente sobre a droga: as consequências, a composição, onde é que aquilo actua, linguagem praticamente médica, não é linguagem para o cidadão comum, é linguagem para Junkie, e Junkie é uma pessoa que se interessa por esses assuntos. Ele sabe a composição dos comprimidos que toma, sabe exactamente onde é que aquilo vai actuar. Se o Junkie é acima de tudo uma pessoa inteligente? A questão não tem a ver com inteligência, apesar de à partida um Junkie ser uma pessoa inteligente, uma pessoa que poderá ter problemas ao nível daquilo que a Psicanálise chama de Pulsão de Morte, pulsões auto-destrutivas e normalmente este tipo de pulsões estão ligadas a pessoas inteligentes e a grande hecatombe que aconteceu por exemplo nas pessoas da minha geração abateu-se sobre as melhores mentes. Os mais burros, mais atados, mais submissos, mantiveram-se afastados, ou só caíram nela por fenómenos de moda. Aqueles que partiram de uma forma resoluta para a experimentação, para o proibido, para a clandestinidade do produto, esses eram as mentes mais interessantes, mais inquietas…”

O desporto. Finalmente. Adolfo abre o livro do passado. “Nos tempos do Ensino Preparatório fazia parte da selecção da escola de corrida de curta distância, na altura era de sessenta metros. Era o melhor da Escola! Mas nunca consegui ganhar nada. Nos Regionais o máximo que consegui foi um terceiro lugar. Não se perdeu grande talento. Além disso também pertencia à Selecção da Escola em Andebol. Era Pivot Central. Nunca fui particularmente bom em desporto…E nem sequer me dava particular gozo praticá-lo! Actualmente? Actualmente não pratico nada!”, exclama, sem evitar desenhar o riso nas feições. Como observador, o quadro que desenha não é muito diferente. “Não sou grande fã do desporto. O que vejo é assim um bocado por acaso, quando calha. Às vezes o que me chama são os grandes acontecimentos, como Campeonatos do Mundo ou da Europa. Isso gosto de ver na televisão. Aliás essas são as únicas alturas em que vejo televisão! Lembro-me do último Europeu, em que eu estava nas Ilhas Maurícias, e tínhamos lá uma velha televisão no apartamento, que dava as coisas a preto e branco, às riscas, com uma sintonização cheia de ruído, e onde mesmo assim assisti a praticamente todos os jogos através da Televisão Mauriciana. Deu-me um gozo enorme estar no outro lado do mundo, no Indico, a assistir ao Campeonato e a ver os portugueses a fazer um brilharete! Também gosto de ver Campeonatos da Europa ou do Mundo de Atletismo. E também vejo Râguebi de vez em quando, mas não há nenhum desporto em particular que me encha as medidas. Gosto quando é um bom jogo, independentemente da modalidade. Mesmo assim raramente um jogo me desperta grande emoção! Não tem nada a ver com a emoção dos concertos. Nos concertos há uma emoção físico-intelectual de estética, é quase como uma ficção, é uma representação de um conflito, há um dramatizar ficcional de uma realidade, o que não tem nada a ver com os jogos.”
Sobre o desporto, e sobretudo sobre o futebol português, lança as suas farpas. Sem rodeios. “A impressão geral que eu tenho é que o futebol português é um grande antro de sacanice, de corrupção e de jogos de interesses! Não sou adepto de nenhum clube! Se há lobbies no futebol? Claro que sim! Há grandes lobbies no futebol!” Competitivamente, como português que é, disserta sobre a Selecção, quando questionado sobre as reais possibilidades da equipa das quinas. “Se for a equipa que foi ao Europeu anterior, e jogando com o factor casa, temos equipa para poder ganhar o Europeu, mas se for a equipa – que era a mesma – que foi a este último Mundial, esses podem ficar em casa. O melhor é não entrarem dentro do campo que não vale a pena!” Pensador por natureza, Adolfo reflecte sobre o futebol enquanto desporto, deixando as pisadas do seu pensamento sobre a importância do desporto-rei para todo um povo. “O futebol pode funcionar como uma espécie de ópio do povo. Quando as querelas internas e os fait-divers servem para escamotear os problemas concretos que as pessoas vivem no seu dia e fazem esquecer a resolução desses problemas, aí o futebol funciona como ópio, como pode funcionar a religião ou qualquer assunto menor relativamente a problemas gritantes que existem…”

A terminar, surge a droga abraçada ao desporto. O doping. “o uso de estupefaccientes está ligado à tensão e à necessidade de obter resultados que o desporto, sobretudo o desporto comercial e profissional, onde há muito dinheiro e muitos jogos de interesses, incute no atleta, que tem necessidade, vê-se quase obrigado a ultrapassar os seus limites físicos, e a ultrapassá-los pelo uso de matérias químicas que o podem levar a isso. mas para mim isso não tem nada a ver com o desporto! Aí já entramos noutro campo, num campo de interesse comercial puro, de prestigio, que no fundo também é comercial… É evidente que esse uso de matérias performativas sempre existiu, em maior ou em menor escala, com piores ou melhores consequências físicas para o utilizador, mas sempre existiu, desde os primeiros Jogos Olímpicos na Grécia antiga. Tem de haver um controle efectivo sobre essa matéria, até por uma questão de defesa dos intervenientes, pois são situações em que eles são levados, na maior parte das ocasiões, por pressões externas, da mais variada índole, a utilizar esse tipo de matérias que, em última análise, só lhe vão trazer problemas de futuro. Há que haver esse controle, sobretudo por uma questão de salvaguarda do desportista. Um ser humano em alta competição é alguém que não tem a capacidade – ou que não está em situação de ter capacidade – de decidir. É uma pessoa que está numa posição de vulnerabilidade extrema, às pressões do treinador, da equipa, dos dirigentes, do país, dos patrocínios…Ele é praticamente empurrado e se não tiver a lei a dizer Isto é proibido, ele não tem qualquer defesa para fazer face a essas pressões que o levam a consumir produtos que lhe dêem performances mais interessantes. Ele precisa dessa proibição para ter o mínimo de defesa! No desporto acima de tudo os interesses são económico-financeiros! Hoje em dia no desporto profissional o que conta é o lucro…”

A terminar, uma pérola. “A minha bebida preferida é…leite!” Inesperado. No mínimo…

Autor: Pedro Chgas Freitas