VILHENA, TRAÇO E PALAVRA VERRINOSOS I

VILHENA Para a posteridade, quando ele der a derradeira gargalhada e partir do nosso convívio, José Vilhena será reconhecido certamente como tendo sido um dos raros nomes que ficam para a história portuguesa do humor e da caricatura da segunda metade do século.

ENTREVISTA TRIPARTIDA EM EXCLUSIVO PARA O ‘INSIDE’, A PARTIR DO LIVRO ‘A GARGALHADA DO RESISTENTE’ A PUBLICAR NO ÍNÍCIO DO PRÓXIMO ANO

*APRESENTAÇÃO*

Vilhena comporta uma faceta de ilustrador e de pintor, menos conhecidas do vulgo, que lhe trouxe a notoriedade possível nos silêncios das décadas de 60 e de 70 do século XX, já para não falar nas fugazes incursões na arte fotográfica, cinema, escultura ou no teatro (de revista e na comédia), sendo que neste campo conseguiu êxitos hoje em dia pouco lembrados.
Desde cedo ganhou a liberdade de não estar dependente das limitações que trabalhar para terceiros acarreta, se passarmos por cima dos breves períodos em que interveio na publicidade ou na imprensa, alternando entre períodos de exuberância gráfica e temática e outros mais apagados, em termos de traço e de criatividade. Nestes deitaria mão da fotomontagem ou a trabalhos já publicados, recriando-os, adaptando-os aos novos contextos. O seu estilo é facilmente reconhecível, graças à utilização recorrente de mulheres roliças e úberes, mas paralelamente assoma amiúde a intervenção activa, com evidentes intenções críticas, de costumes e/ou política
Passou alguns sustos, ao ser detido pela PIDE sem culpa formada — para quê se a prova de delito estava ali, exposta para a quem quisesse ver, nos seus livros? — e maiores agruras com a sistemática apreensão das suas publicações, não fora a cumplicidade dos livreiros e jornaleiros que as escondiam debaixo da bancada, só para os indefectíveis, respaldando-as da sanha persecutória das polícias, numa atitude solidária com o seu arrojo, a que inadvertidamente se prestaram os próprios CTT, através dos quais, e em virtude dos portes acessíveis, ele distribuía os livros por todo o país.
Mas foi graças a essa atracção pelo proibido, que tanto faria florescer as publicações clandestinas até 1974, que Vilhena conseguiria alcandorar-se a um estatuto único no panorama editorial português, dirigindo, criando e distribuindo, sozinho, algumas das mais notáveis peças da sátira e do humor nacionais.
O período de ano e meio subsequente ao 25 de Abril fornecer-lhe-ia material de sobra no qual espraiar a sua verve e o seu característico traço. Não sem que as novéis instituições tentassem coarctar-lhe a rebeldia, na pessoa do coronel Jesuíno (a Gaiola Aberta seria mesmo, por uma vez, suspensa) ou até do principado do Mónaco, o próprio, na soberana pessoa da princesa Carolina, que em virtude de uma montagem fotográfica processou o coitado, não vendo um chavo, claro — se calhar abjuraram-no e interditaram apenas a sua entrada no palácio real, ou principal, já que o Mónaco é um principado.
Também umas figur(on)as pú(dic?)blicas, da televisão, quiseram deitar o dente ao seu pecúlio e património, instaurando-lhe processos judiciais. Para não se chatear de mais, e dando ouvidos ao aconselhamento jurídico, pagou a duas, outras reconsideraram e desistiram, uma derradeira (Margarida Marante) tem processo pendente, a correr lá para o final do ano.
Entretanto, aos 76 anos, Vilhena continua mordaz e irreprimível, nos livros que edita e na revista (Gaiola Aberta — II Série) que mensalmente publica. Apesar de a idade lhe pesar, e de economicamente não necessitar, prossegue neste desiderato de manter acesa a chama do humor nacional, uma das poucas áreas que não têm qualquer concorrência no panorama da imprensa portuguesa. Só a televisão concorre com ele, da forma quase sempre medíocre que conhecemos. De resto não há nada, só Vilhena, neste país de gravatas berrantes e mentalidades cinzentas.

NA PRIMEIRA PESSOA

Nessa década de 50 iniciou a sua actividade como publicista, «que para os artistas era o grande ganha-pão, pois os jornais pagavam mal», apesar de as anedotas que vendia para os periódicos lhe proporcionarem uns nada desprezíveis 50$00, «o que já dava para almoçar e jantar». Diário de Lisboa, Cara Alegre ou O Mundo Ri testemunham a sua actividade desenvolvida neste campo. Frequentando o meio quase todos os dias, «para tratar do meu negócio», conhecia toda aquela gente dos jornais, que logisticamente aí tinham as suas sedes e montavam arraiais no Bairro Alto, onde jantavam juntos, encontravam-se e partilhavam a boémia possível que era deveras aproveitada nas noitadas de tertúlia, intriga, copos e mulheres.
Paralelamente despontava a sua veia de retratista, que ainda hoje privilegia. «Fazia uns retratos a óleo para umas marquesas, umas pessoas importantes, clássicos, que pelo menos tinham uma coisa boa, fazia as pessoas muito parecidas com o que elas eram, ou seja identificáveis com o original, apesar de as beneficiar um pouco, por forma a que ficassem agradadas com o trabalho executado.»
A sua capacidade inata de retratar as fisionomias alheias revelava-se através dos desenhos que fazia de personalidades, nacionais e estrangeiras, se bem que para consumo e deleite próprio, prática ganha também através de centenas de livros de curso ou de finalistas, que era uso fazer-se no final do ensino universitário, em todas as faculdades, que retratavam os finalistas de cada curso de forma algo caricatural, emoldurados por sintéticas biografias em verso que enalteciam ou satirizavam as suas características mais proeminentes, por excesso a maioria das vezes.
— Ter jeito para fazer uns desenhos é uma coisa. Quando é que sentiu que dispunha de capacidades específicas para se poder dedicar ao retrato?
— Já antes da Faculdade de Belas-Artes, no Porto, fazia muitos bonecos, nomeadamente para os jornais. É algo de inato, espontâneo, já que não tenho ninguém na família que me pudesse ter transmitido os genes correspondentes.
Por esses tempos, publica três colecções de cartoons de sua autoria, sendo a primeira de anedotas ilustradas, a que se seguiram outras, assim como livros já com textos de sua autoria, dos quais o primeiro foi o Este Mundo e o Outro, publicado em 1959 (?), o seu primeiro livro de textos humorísticos, e de seguida a primeira de uma série de antologias de humor estrangeiro (nomeadamente francês, russo e espanhol), com capas suas e por vezes também ilustrações no interior.
Cedo Vilhena começou a pisar o risco, cautelosamente, depois com maior ousadia e finalmente de forma mais acintosa, o que era perceptível através da forma como, na revista O Mundo Ri, denunciava, graficamente, que aquela publicação havia sido submetida ao crivo da censura.
Os seus livros e os desenhos provocam-lhe problemas com a polícia, especialmente com a PIDE, resultando em constantes apreensões dos seus escritos que desembocaram em três visitas à prisão de Caxias, sempre sem julgamento formal.
— Enfim, como é que se iniciou a longa série de livros, única forma mais segura de edição antes do Abril de 74, já que eram censurados, leia-se apreendidos, a posteriori, logo não tinham de ter o ‘imprimatur’ oficial para serem publicados?
— Nunca pensei em escrever, mas fazia muitas anedotas para os jornais, ao ponto de o Diário de Lisboa contar com centenas de gravuras minhas — chamava-se então zincogravuras —, o que me deu o ensejo de as publicar, em jeito de colectânea, em livro. Só que, como o elemento principal eram as gravuras, dei-me conta de que eram uma coisa que se lia em meia dúzia de minutos. Então resolvi passar a incluir textos, que vieram a crescer de tamanho com o tempo, ao mesmo tempo que diminuía a quantidade de desenhos. Isto ao ponto de os primeiros livros de texto que editei terem tido grande sucesso.
Aliás, no mesmo O Mundo Ri, Vilhena publicaria um texto de Eça de Queirós extraído de um livro seu que foi também cortado pela censura (O Primo Basílio), ou seja: Eça, para os coronéis do lápis azul, não passava!
Nesta senda, em 1960 publicou Pré-História, o primeiro volume da sua História Universal da Pulhice Humana, situada em ambientes históricos como o Egipto, Israel e a Grécia, mas em que eram evidentes as similitudes com o Portugal da época, a partir do qual teve início uma série de sucessos que ainda hoje em dia se poderão encontrar junto dos alfarrabistas. Nos dois primeiros volumes começaria a desenvolver o seu estilo como que subliminar, em que parece que não diz em letra de forma o que efectiva e capciosamente diz, através do qual sobrepunha à História a contemporaneidade e em que atacava o cerne do regime salazarista, como se pode comprovar pelo excerto que de seguida se reproduz do livro Os Judeus:
«O seu regime era de tal maneira sombrio, sinistro e policial, que vós, amados leitores, criados num paraíso de liberdades, não conseguiríeis sequer imaginar. Em Assur, em Ninive e na Babilónia reinavam o terror, o bastão, a denúncia, o boato político, a incerteza do dia de amanhã. A cada esquina postavam-se ferozes Pideteucos armados até aos dentes, espiando os menores ruídos e as mais inocentes vozes.»
Nos seus livros é patente uma estrutura narrativa similar, de grande homogeneidade temática em que o elevado ritmo de produção terá implicado alguma repetição e redundância. O humor tem origem num processo de renovação, mais do que de inovação.
De acordo com o autor, os seus livros venderam-se muito porque «denotavam uma certa ousadia e as pessoas apreciavam sobremaneira quem infringisse, com sucesso, a lei vigente. Tudo o que achincalhava o sistema era procurado, não tanto pela sua qualidade literária como pelo arrojo de publicar algo com essas características, que desafiasse o statu vigente».
Os próprios revendedores cedo habituaram-se, ao receber as remessas de livros de Vilhena, a só terem um exemplar à vista, para apreensão, escondendo cautelosamente os demais, que se destinavam aos seus clientes habituais. Em toda a sua bibliografia, apenas um foi integralmente apreendido — A Grande Tourada — devido a uma suposta denúncia, tendo seguido directamente da tipografia para as instalações da PIDE, onde os seus sequazes certamente não deixaram de se deleitar com a sua leitura.
Mas igualmente outras iniciativas, mais inseridas nos parâmetros do establishment, faziam o que lhes era permitido, como o Cara Alegre ou O Mundo Ri. Os Parodiantes de Lisboa também tinham uma publicação. Parodiantes que viriam a conseguir, na década de 60, um assinalável êxito mas ondas hertzianas, aos microfones do Rádio Clube Português, tentando assumir um cunho politicamente neutro, se bem que felizmente não integralmente conseguido, e que depois de algumas vicissitudes continuam hoje numa rádio local de Sintra.
Como sempre acontece quando a razão da força se sobrepõe à força da razão, Vilhena pagou os custos da sua pertinácia, tendo sentido na pele três estadas nos calabouços (em 1962, 64 e 66), ainda que não tenha sido submetido a grandes sevícias por parte dos seus carcereiros, que se limitavam a mantê-lo em banho-maria por algumas semanas, sem pronúncia nem acusação, não tendo jamais sido condenado.
Como refere o próprio, eles tratavam-no bem. «Metiam-me na cadeia mas nunca exerciam as sevícias de que eram vítimas outras pessoas de quem eles queriam obter informações, pois de mim não havia nada a tirar, estava tudo escrito nos livros.» E se, nas primeiras vezes que foi preso, «tive um medo terrível desses interrogatórios», nunca chegaria a ser torturado, já que não estava envolvido com qualquer força política e a matéria de acusação estava ali bem patente, nos seus livros, para quem quisesse ver.
Lá pela segunda ou terceira visita à Rua António Maria Cardoso, «um subdirector, chamado Sacchetti, um gajo tenebroso, permitiu-se mesmo dar-me uns conselhos de amigo, afirmando que eu devia ter juízo, que não me metesse naquelas coisas, pois era chato, eles até gostavam de mim e achavam-me muita graça, mas tinham de fazer o seu serviço — isto numa altura em que já tínhamos alguma intimidade.»
O problema é que logo desde o princípio «comecei a meter a pata na poça», porque os livros apreendidos tinham alusões muito directas. No primeiro havia mesmo muitas piadas à própria PIDE, e «os tipos tinham uma grande falta de fair play», afirma, rindo-se hoje dessas peripécias por que passou.
«Eles eram simultaneamente polícias e juízes. Logo que me prendiam determinavam o tempo que eu devia passar na cadeia e votavam-me um desprezo total: prendiam-me e punham-me cá fora sem me dizerem sequer porque me tinham detido ou porque é que me tinham solto. Se eu não tivesse consciência do que tinha efectivamente feito poderia pensar que estava preso por qualquer outro motivo. Ou seja, ao fim do tempo estabelecido vinha um fulano à cela e dizia-me que podia ir-me embora e pronto, estava o assunto arrumado».
Para fazer face às incursões censórias, Vilhena rapidamente aprendeu que não deveria pôr os ovos todos na mesma cesta, pelo que passou a entregar as encomendas, ou seja os livros, não na estação central dos CTT (onde, normalmente, havia sempre um denunciante da PIDE à coca — ou seja à espreita, que naqueles tempos a coca não era alvo de grande atenção policial) mas em diversas estações de correio da periferia de Lisboa, dificultando assim a sua apreensão. Recorde-se que as franquias postais, nesses tempos, eram de tal ordem que permitiam a distribuição dos livros via postal, ao invés dos meios próprios de fazer chegar os títulos aos livreiros, quiosques e tabacarias, através das distribuidoras, como hoje acontece.
«Recordo-me de que nesse tempo cada livro custava-me um tostão de portes, um valor ridículo. Se fosse hoje, cada envio ficava-me quase ao preço do próprio livro. Desta forma conseguia fazer chegar os livros a todo o país, com as sobras também devolvidas via CTT.»
Mas, façamos aqui um breve hiato e consideremos, a montante do humorista, o homem que o suporta.
— Vilhena nunca foi casado, limitando-se a sua família genealógica, nessa época, às suas irmãs. Mas viveu, certamente, com alguém, durante largos períodos…
— … e mais do que uma vez.
— Filhos, tem ou teve algum?
— Não tive nem tenho filhos. Aliás, isso, bem como o facto de não me ter casado, terá a ver não sei se com uma qualquer cobardia, pois pressupunha que uma pessoa casada tinha certos deveres familiares e não podia ser preso, deixar a família em situação económica difícil. E, já que eu, por mim próprio, facilmente me governava fazendo desenhos, pinturas, etc., nunca tendo tido grandes problemas de dinheiro, não me atrevia a arcar com a responsabilidade de constituir família. Sendo livre essas questões não se me colocavam.
— Já nessa época era descrente na própria instituição do matrimónio — como dá a entender nos seus livros, onde desmonta muitos dos seus pilares e pressupostos — ou essa sua opção devia-se meramente ao que acabou de relatar, ao mesmo tempo que lhe proporcionava uma maior liberdade de movimentos para ter as relações ocasionais que bem entendesse?
— Evidentemente que um tipo que não é casado está muito mais à vontade para ter as suas aventuras, o que não significa que os casados as não tenham, até com mais vigor e adrenalina, porque nesse caso a coisa é proibida, logo a aventura mais excitante. Mas as verdadeiras razões prendiam-se com essa obrigatoriedade de ter um modo de vida estável, sem altos e baixos nem aventuras, fossem amorosas ou económicas.
— Nunca teve a nostalgia, digamos assim, de chegar a casa e ter quem lhe trouxesse as pantufas, lhe servisse um jantarzinho quente, lhe proporcionasse expectáveis noites de carinho?
— Houve de facto alturas em que me agradaria ter uma mulher. A minha vida era mais ou menos organizada. Tinha uma vivenda em Oeiras, enfim, se tivesse uma mulher talvez tivesse sido mais agradável. Mas, não sendo assim havia que tratar de tudo, fazer as contas com a empregada, comprar as coisas para a despensa, etc. No entanto, a verdade é que com o casamento perde-se uma quota-parte de liberdade e para mim essa liberdadezinha é fundamental. Mesmo quando o casamento corre bem, não concebo que se me apetecer sair de casa não o possa fazer, sobretudo quando não é por razões que possam incomodar a outra parte, mas meramente para mudar de situação.

Autor: Luís Guimarães