MIA COUTO LANÇA NOVO ROMANCE

“Venenos de Deus, Remédios do Diabo” é o novo romance do escritor moçambicano Mia Couto. É através das palavras escritas que Mia Couto fala do seu povo – do povo de Moçambique. Fala dele e para ele. Conta-nos as histórias de Moçambique, os sonhos, as ilusões, as promessas e os desejos. Esta é mais uma obra onde é elevada a livro a história de pessoas, de moçambicanos, de sentimentos e de mistérios. Mia Couto é Moçambicano não só de terra ou de nome. É moçambicano do coração.
Entre “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” e a realidade, Mia Couto falou deste novo romance e da sua única expectativa sobre o mesmo: “A minha única expectativa é quem leia este livro tenha tanto prazer como eu o tive a escrever”.
Esta é mais uma das muitas obras que promete encantar aqueles que já se habituaram à leitura de Mia Couto. Os que ainda não experimentaram, são convidados a fazer uma viagem por Moçambique.

Inside: Sidónio Rosa é um médico português que vai para Moçambique ao encontro de um amor e para ajudar o povo moçambicano. Mas este português ainda não é médico. Acha que estas situações acontecem na realidade? Um médico exercer funções de médico sem ter qualificações comprovadas para tal?
Mia Couto: Sim, acontecem. Ainda agora em Moçambique aconteceu uma situação idêntica. E imagino que em Portugal também surjam coisas semelhantes. Se estas situações acontecem em hospitais de centros urbanos, imagine-se numa pequena aldeia, numa pequena vila, onde não há esse controle. Na história, este facto é uma pequena mentira, não é uma mentira total porque faltam-lhe poucas cadeiras para ele terminar o curso. É um aspecto marginal na história. Isto tudo para dizer que a história é feita por um conjunto de mentiras mas também fomentada pelos dois lados da mentira.
Inside: Solidão, sonhos, morte e recordações são as estruturas essenciais em que assenta esta obra. Acha que estes temas estão inevitavelmente interligados?
Mia Couto: Sim, eu acho que há um lado nisto tudo que é um desamparo total. Quando nós construímos a nossa vida, como uma nova vida que tem fim, há em certo momento, uma altura em que percebemos que isso não tem cura. É preciso criar este conjunto de ilusões para iludir a morte, para iludir a solidão e para iludir a tristeza. Por isso, o sub – título deste livro é “As Incuráveis Vidas de Vila Cacimba”.
Inside: O livro retracta a rivalidade entre mulatos e negros. Essa distinção e rivalidade continua a ser tão evidente e marcante em Moçambique?
Mia Couto: Eu não diria que isso existe em Moçambique como algo permanente e generalizado. Há, de facto, casos em que se evoca a raça. Existem conflitos em que dá jeito que o outro tenha uma raça distinta. A ideia do mulato é a ideia de alguém que vive no linear e que ora se apresenta como um negro ora como um branco. Esta rivalidade é episodicamente lembrada nesta obra.
Inside: As novas doenças, como por exemplo o HIV, estão muito presentes no Continente Africano. Acha que ainda há a convicção de que as mulheres virgens podem ter alguma fonte de cura para muitas doenças?
Mia Couto: Sim, isso existe. Principalmente no sul de Moçambique, no Norte da África do Sul. Há a ideia de que existe a purificação através de uma mulher que não seja quente, ou seja, mulher virgem. Para assegurar que uma mulher é virgem há uma fasquia de idade. Por isso, há muitas meninas que são violadas para este tipo de purificação.
Inside: Esta obra fala-nos da época de colonização. Acha que apesar de toda a história, o povo moçambicano tinha, ou tem, algum fascínio pelos portugueses?
Mia Couto: O fascínio que os moçambicanos têm em particular pelos portugueses acho que não existe. Esta obra fala-nos de um personagem que vivia entre os dois mundos, entre o país colonizado e o país colonizador, e ele ficou fascinado pelo país colonizador. No entanto, haveria um outro grupo de pessoas, em Moçambique, que tinha uma relação muito ambivalente de amor e ódio. No fundo, a primeira reivindicação moçambicana não foi logo nacionalista. Quer dizer, não foi proclamação da diferença de nós sermos uma outra nação. É preciso perceber, que os pré – nacionalistas, que se proclamavam portugueses, queriam, apenas, ser tratados de uma maneira igual. O que estava mal era haver essa discriminação racial e social. Mas eu acho que hoje isso está bem resolvido e os moçambicanos encaram os portugueses como mais um povo. Não há nenhum fascínio nem nenhuma nota negativa.
Inside: Apesar de tudo o que acarreta a palavra colonização, acha que há sempre uma boa recordação para mais tarde?
Mia Couto: Uma coisa é a experiência individual outra coisa é aquilo que se fala em termos colectivos. Eu acho que aquilo que podemos chamar de colonização não tem, praticamente, uma coisa boa em si. No entanto, a colonização trouxe contactos entre povos que foram bons e que historicamente produziram mestiçagens culturais e não foram, nem podem, ser olhados apenas como uma forma condenatória. Para além disso, temos que perceber que foi um sistema político que não foi feito só por europeus em África mas também com cumplicidade de
africanos.
Inside: Apesar de muitos de nós negarmos que somos racistas, acha que no fundo todos temos um pouco de racistas? Talvez quando somos colocados em situações extremas?
Mia Couto: Eu acho que, há coisas que podem não ser raciais. Este sentimento de tribo é um sentimento que está muito na nossa espécie. Quer dizer, pode ser a raça, pode ser a etnia, pode ser entre homens e mulheres, etc. De repente, surge esta explicação, que é a mais fácil e
a mais primária, que pode mobilizar violência e que autoriza que eu desumanize o outro. E ao desumanizar o outro eu estou autorizado a ser violento.
Inside: Acha que é o esquecimento que nos faz ficar fora da vida? Ou será mesmo a morte?
Mia Couto: Nenhuma das coisas tem essa força para nos retirar da vida e criar esse afastamento. A ideia que está nesta obra, e que está presente em toda a África, é que os mortos nunca morrem. Portanto os mortos estão vivos de uma outra maneira. E isso, de facto, é uma crença forte em toda a África. De tal forma que, os vivos vivem em ligação profunda com o mundo dos mortos sabendo que os mortos têm essa capacidade de interagir e comandar a vida.
Inside: O primeiro romance de Mia Couto – Terra Sonâmbula – chegou às salas portuguesas há pouco tempo. Esta adaptação de Teresa Prata, mostra-nos a situação de Moçambique após a guerra. Esta é uma forma de mostrar ao mundo o sofrimento e os verdadeiros sentimentos do povo de Mia Couto?
Mia Couto: O que eu quis fazer em Terra Sonâmbula era mostrar que há uma nação que está à procura de si mesma e a guerra foi só um momento em que esse retracto de Moçambique estava, ainda mais, dificultado. Havia ali uma poeira, um fumo que não permitia que nos conhecêssemos a nós próprios. Depois, há este menino que junto com este velho seguem uma estrada que afinal é o próprio sonho. Neste sonho, há um casamento em que o menino está com um pé na modernidade, sabe ler, e o velho tem um pé na sabedoria, sabe escutar e contar histórias. Portanto, é esse casamento entre a modernidade e esta tradição que permitem que de repente se veja que Moçambique está em movimento.
Inside: O que são os Venenos de Deus e os Remédios do Diabo?
Não tem um sentido literal como pode parecer à primeira vista. Fala de um lugar que é tão distante, tão nublado, tão longe da lógica. Há aqui uma inversão de valores em que a única entidade que pode surgir de ajudante salvador é o Diabo, pelo menos naquelas circunstâncias. E a única coisa que se pede a Deus são coisas que, em princípio, não se devem encomendar ao mal.
Inside: Quais são as expectativas para este novo romance?
Mia Couto: Eu não sei. A minha expectativa foi fazer a história, agora ela vai caminhar para outras lógicas. A única expectativa que tenho é que quem leia este livro tenha tanto prazer como eu o tive a escrever.
Inside: E quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser feliz?
Mia Couto: Eu acho que sim. Tudo começa por um apelo à ousadia. É preciso arriscar.

Autor: Marisa Antunes